quarta-feira, 7 de março de 2012

Eva..Maria...Lilith?


"Séculos e séculos de uma visão masculina da vida, do poder, cimentaram em nós, mulheres, crenças que ainda hoje nos diminuem a condição. Crenças profundas que nos foram afastando do poder de ser mulher."



“É muito tempo a desejar o tempo
 De mudar ventos, levantar marés
 É muita vida a desejar o alento
 Que faz saber ao certo quem és…” Outra Margem de mim – Mafalda Veiga

A relação Feminino/Masculino é universal. Os antigos conceitos chineses yin/yang, são princípios gerais, representações simbólicas das energias presentes na natureza.

Yang – elemento criador, gerador, energia iniciadora, impulsividade, agressividade, ordem, exterior, consciente, intelecto, força.
Yin – elemento receptivo, dócil, interior, envolvente, natureza, inconsciente, mente intuitiva, cooperante.

Toda a manifestação no mundo é dual, dividida. Em nós também.

O ser humano é um sistema constituído por várias partes e tudo tende novamente para a união, para que se torne uma totalidade em nós. Esta totalidade em nós é o processo que Jung chamou de Individuação. O caminho de Ser um Indivíduo, de Ser Inteiro, Uno, Não Dividido. Um processo arquetípico que nos permite ser … Mais. E o caminho do Homem é este. A transcendência do dual, a reconciliação dos opostos, os contrários que se juntam, a síntese. A noção de Anima, como a parte feminina presente no inconsciente do homem e Animus, como a parte masculina presente no inconsciente da mulher é, em Jung, a representação destes opostos em nós. Opostos que criam tensão.

No entanto, dentro de nós, mulheres, a tensão não é apenas vivida entre feminino e masculino. A tensão é também vivida entre os vários arquétipos femininos. Vivemos numa sociedade onde historicamente há uma supremacia do elemento masculino sobre o elemento feminino, vivemos numa sociedade patriarcal. E por isso pergunto: Que Anima? Que feminino? Será que a Anima em nós mulheres é assim tão consciente? Ou será que a verdadeira Anima, a Deusa, mulher integrada, inteira, o feminino profundo, está fragmentada e desligada da mulher dos nossos dias...?

Séculos e séculos de uma visão masculina da vida, do poder, cimentaram em nós, mulheres, crenças que ainda hoje nos diminuem a condição. Crenças profundas que nos foram afastando do poder de ser mulher. Crenças que nos foram aproximando deste conceito yang de poder. E são os valores femininos que fazem profundamente falta na nossa sociedade. Ainda há pouco tempo li um artigo no Público on-line sobre um livro de Steven Pinker (psicólogo da Universidade de Harvard e antigo subsecretário da Defesa dos EUA) onde o autor defende que se o mundo fosse governado por mulheres seria mais pacífico. Os homens “tendem a escolher a força do comando, enquanto as mulheres são mais pacificadoras”. Os mais cépticos falam do exemplo de mulheres que já tivemos e temos no poder… esquecem-se que essas mulheres continuam a actuar segundo valores masculinos.

Olhando para os mitos como representações puramente simbólicas dos vários femininos que estão impressos em nós, encontramos na base da sociedade ocidental como exemplos femininos a modelar, Eva e Maria.

Eva

Mulher de Adão, criada a partir de uma costela do primeiro homem para ser sua companheira. Trouxe o pecado ao mundo e levou Adão a pecar. Cedeu à tentação, à serpente. Culpada pela expulsão da humanidade do Paraíso, carregando o estigma do pecado, impureza, fragilidade. Eva, a mulher submissa, que tem a sua identidade e existência ligadas a Adão, ao homem.

Maria

Em Maria temos a mãe de Jesus, Cristo salvador da humanidade. Maria engravida do Espírito Santo ainda sendo virgem. Maria é mãe e virgem, atribuições que remetem para a mãe perfeita, assexuada, pura como todas as mães deveriam ser. Maria, mãe simbólica da humanidade que vem redimir os pecados de Eva.
As duas, Eva e Maria, têm em comum o facto de serem validadas na sua existência pela sua relação com o masculino. Uma é assexuada, a outra, culpada pelo pecado original.


Depois….

Lilith. Vive nos confins sombrios do nosso inconsciente colectivo. Quem é Lilith?

Lilith  aparece na tradição rabínica de transmissão oral, no folclore hebraico, em textos cabalísticos... O alfabeto de Ben Sirak é o registo mais antigo que se conhece sobre Lilith. Existem várias versões de Lilith e aparece em várias culturas.

Lilith é descrita como tendo sido a primeira mulher de Adão. Em alguns escritos Lilith e Adão eram o hermafrodita que Deus separou em duas metades, feminina e masculina. Noutros, Lilith é criada por Deus da mesma forma que Adão, ou seja, moldada pelas mãos divinas, só que a partir de lodo e lama. Com o tempo, Lilith torna-se rebelde e não se conforma em estar numa posição inferior à de Adão, já que ambos tinham sido criados à imagem e semelhança de Deus. Inclusive, na relação sexual, Lilith não se conforma em ser submissa. Diz-se que Lilith e Adão viveram uma verdadeira paixão, que ela o tirava do sério. Lilith entra em conflito com Adão e com o Criador. Por isso, tem de escolher entre submeter-se ou partir exilada para o Mar Vermelho, onde vivem os demónios. Lilith escolhe partir. O seu castigo é tornar-se um demónio, a rainha da noite.
É a partir daqui que Deus cria Eva, para acabar com a solidão de Adão.
Lilith representaria assim a mulher independente, que sabe o que quer, que não se envergonha de si própria, activa sexualmente. Enviada para o inconsciente como demónio, ali ficou como sombra. Acusada de todos os males e tentações. Em alguns escritos Lilith é a própria serpente que tentou Eva. Demónio nocturno que vinha tentar os homens, matava crianças, gerava demónios. Acusada de encarnar na mulher que ousava ser diferente e pôr em causa a ordem - a bruxa, queimada.

Das sombras todos temos medo. E assim, como sombra e sombria, reconhecemo-la pela negativa – é a mulher fatal, a amante, a tentadora perversa. É a representante de impulsos sexuais reprimidos.

Mas… não poderão Maria, Lilith e Eva coexistir na Mulher? Em pleno século XXI, não será tempo de tirar Lilith da sombra e dar-lhe luz? Até quando será convenientemente demónio?

Não nos poderemos nós rever na doçura e companheirismo de Eva, no amor incondicional de Maria, e ao mesmo tempo ganharmos espaço criativo para a nossa própria expressão enquanto e como mulheres, levando activamente os valores femininos ao mundo? Mudando o mundo. Não poderemos nós ser mães, companheiras, amantes? Em que é que a nossa independência e vivência sexual nega os valores femininos? Os valores femininos só são negados quando procuramos ser yang na nossa expressão.
Haverá sempre Marias felizes, Evas felizes, Liliths felizes. No entanto, para as que sentem o vazio, a insatisfação com os papéis que decidiram ou decidiram por elas assumir, não será a integração, assumir o poder feminino na sua totalidade, ser mulher inteira, a Deusa, o caminho ou pelo menos parte dele?

Hoje deixo-te apenas uma pergunta:

Se não tivesses que ser nada, quem gostarias de ser? Quem poderias ser?

Vera Braz Mendes - Publicado Sapo Mulher


6 comentários:

  1. Muito obrigada por postar isso, me ajudou em uma pesquisa que estou fazendo sobre arquétipos femininos. Não tive a oportunidade de ler todo o texto, mas salvei nos meus favoritos para que eu possa ler tudo depois.
    Abraços
    Tami
    (tive que deixar em anônimo pq estavam pegando o pé com a minha URL, rs)

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  2. Isto é maravilhoso.
    Porque acordo todos os dias com este dilema... não se sou Eva, Maria ou Lilith (porque se calhar sou todas) Mas como posso ser e afirmar-me como MULHER? Como posso afirmar o meu direito à igualdade perante os homens, mas afirmando o meu direito a ser diferente porque sou mulher? ADOREI!
    Rita

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  3. Para quem tem a Lilith, lua negra, na casa 8, em Aquário, este texto vem todo a calhar!!
    Maravilhoso Vera!
    Beijão. Agradecido sempre.
    Astrid Annabelle

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  4. Excelente texto e trabalho vera. Adorei, é um tema lindo e muito pertinente. Bjinhos

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